terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A casa dos pequenos cubos: um convite ao mergulho

Fui convida para fazer um comentário sobre o curta La Maison em Petit Cubes no encontro dos estudantes do curso de Formação em Psicanálise do Núcleo Távala de Ribeirão Preto. Dias antes de participar do encontro acordei insone com as palavras pulando na cama, pedindo-me para que eu não as perdesse. Advinha? Levantei e escrevi. Estou compartilhando com você as letrinhas malucas que não me deixaram dormir e que, afinal, foi o meu comentário sobre o curta no dia do encontro.

É interessante ver o curta antes, de ler o meu texto.

Esta é a minha maneira singular de sonhar este pequeno curta. Baseado na minha vivência deitado no divã. Assumo todos os riscos. Gostaria que você sonhasse comigo.

Quem sou eu? Esta pergunta que é fundamental tanto a filosofia como a psicanálise, nos atravessa do nascimento a morte. Atravessa porque? Somos convocados a respondê-la, mesmo que passemos a vida da forma mais pragmática e ordinária possível, nunca pensando em questões existenciais. Ela está sempre fazendo uma evocação: como uma música de fundo, um cheiro que nos transporta sem saber para onde. Ela nos coloca frente a frente com um enigma. Não há como fugir, o destino de quem se recusa a tentar respondê-la é ser devorado pela Esfinge[1]: o esquecimento. Ser devorado significa perder a memória. A memória é o fio de Ariadine que nos conduz a reposta. Neste caminho há ainda, como em todo enigma, um paradoxo: a resposta é sempre esprilada e impermanente – assim como a vida. Talvez o caminho seja mais importante que a chegada. O que me lembra uma música do Paulinho Mosca:
A seta e o Alvo
Eu falo de amor à vida
Você de medo da morte
Eu falo da força do acaso você de azar ou sorte
Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta
Te chamo pra festa, mas você só quer atingir sua meta
Sua meta é a seta no alvo
Mas o alvo na certa não te espera
Eu olho pro infinito e você de óculos escuros
Eu digo te amo e você só acredita quando eu juro
Eu lanço minha alma no espaço; você pisa os pés na terra
Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era
E o que era; era a seta no alvo
Mas o alvo na certa não te espera
Eu grito por liberdade você deixar a porta se fechar
Eu quero saber a verdade você se preocupa em não se machucar
Eu corro todos os riscos você diz que não tem mais vontade
Eu me ofereço inteiro você se satisfaz com metades
Então me diz qual é a graça de já saber o fim da estrada
quando se parte rumo ao nada.

Muitas pessoas ingenuamente acreditam que esquecer vai nos trazer um conforto, uma paz. A psicanálise nos mostra visceralmente, além de intelectualmente, que é exatamente a memória que pode nos ajudar a buscar a resposta. É no mergulho nas águas daquilo que mais nos assusta, reminiscências, significados, no desterrar que vamos nos encontrar com este sempre escorregadio vir a ser.
Existe uma pequena história do Rubem Alves[2] que eu adoro. Ela fala sobre um príncipe que tinha uma linda voz e que foi transformado em sapo porque não quis fazer um dueto com uma bruxa, com uma voz horrível. Ele virou sapo, mas não perdeu a linda voz, porém ninguém queria um sapo cantando no reino e mandaram ele para o charco. Quando ele resolveu cantar suas lindas canções no charco os sapos lhes disseram que sapos não cantam coaxam. E assim começou o processo de esquecimento do príncipe. Ele só lembrava das músicas que cantava outrora nos seus sonhos e acordava com uma vaga sensação de uma saudade que não sabia porque. Saudade que lhe contava como estava longe da sua casa.
Na maior parte das vezes as palavras que vamos ouvindo durante a vida enfeitiçam esta linda voz que nos conta nossa história. Vivemos numa cultura que nos convida ao hedonismo[3]: uma luta perpétua pelo prazer e a felicidade da hora. Que nos seqüestra a lembrança daquilo que é significativo para nós e nega de maneira contundente as mortes, os lutos. Negar o luto é perder a memória. Estar enlutado talvez seja um das vivências psíquicas mais importantes que passamos. O luto nos ensina o exercício de aceitar que perdemos, aceitar que vários outros integram nosso eu e que não existimos como ilha ou mônoda: preciso do outro. Sua ausência também me ajuda a saber quem sou.
Como vivemos na civilização da obrigatoriedade da felicidade (os pegue-e-pague da vida) quando saímos em busca de responder o Enigma nos sentimos embaraçados. T.S. Eliot tem um aforismo que fala muito bem deste sentimento: “Num país de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”. Então muitas vezes por achar que na verdade existe algo de “errado” conosco, vamos montando casas de cubos nos protegendo das lembranças e memórias como se elas fossem uma maldição. Não sabemos que o contrário é verdade: o esquecimento é a maldição.
É este convite que a psicanálise faz a quem tem o desejo e a coragem de deitar num divã: ver pelo avesso, passar pelas escotilhas e ir mergulhando cada vez mais fundo naquilo que nos construiu: memórias. “(...)quebrar o feitiço da palavra má que nos fez adormecer e esquecer a melodia bela.”[4]
Às vezes nosso cachimbo predileto cai pela escotilha. A queda do cachimbo nos faz um convite ao mergulho. Este mergulho pode nos levar a lembrança de todos os lutos que já fizemos ou nos recusamos a fazer. Podemos ficar somente no primeiro cubo, um mergulho raso ou podemos ter a coragem, e acredito heróica, de tocar os pés no fundo. O processo de análise tem muito a ver com desenterrar os mortos e com eles os nossos tesouros perdidos. Pegamos o nosso fio de Ariadne e urdimos a colcha. O terapeuta e aquele que senta conosco e vai nos ajudando a tecer. Ele segura o fio com cuidado, porque sabe, pois já vivenciou o mesmo processo, como este fio é precioso. O psicanalista é o escafandro que possibilita o mergulho. Sem ele ficamos na superfície, náufragos. Nos ajuda a enxergar a miríade de ângulos possíveis de nossas lembranças. No processo vamos (re)significando espiralmente esse quem somos.
Não há cura, mas reconciliação. Na linha mesmo daquilo que Hannah Arendt diz: precisamos compreender para perdoar. O fato continua a existir. Assim sendo é uma idealização narcísica acreditar que vamos passar por uma transformação e que vamos ser aquilo que planejamos – perfeitos. Clarisse Lispector diz numa carta a sua irmã “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”[5]
Incomodo. A psicanálise tem uma vocação iconoclasta. Charles Feitosa tem um pensamento sobre o amor e a filosofia que cabe muito bem a psicanálise. “Entregar-se ao amor pelo saber ou por alguém exige uma certa disposição para a vertigem, para a perda provisória do autocontrole. Na vertigem corre-se o perigo de queda, mas abre-se também a possibilidade de ter prazer com o movimento. Só é capaz de amar quem tem coragem de perder o prumo.”[6] Brincando com as palavras de Nietzsche: vamos sim, no processo analítico, descobrindo que somos humanos, demasiadamente humanos. Que somos uma corda atada entre nossas memórias e nossos lutos, uma corda atada sobre um abismo. O maior risco que corremos não é o de cair, mas de ficar preso a corda. Passei por um luto a dez anos atrás e me lembro sempre de ser convida pela minha analista a pular: ela me dizia que essa era uma ocasião muito especial da minha vida e que poderíamos encontrar tesouros inimagináveis se eu mergulhasse.
Não fazer o luto, qualquer que seja ele, é como investir numa poupança na qual vamos receber juros enormes que na verdade não queremos. Lutos não vividos são cumulativos. Assim todo luto abre a caixa de pandora dos lutos que deixamos de viver. Vivenciar nossos lutos é poder beber uma taça de vinho com nossas lembranças.
Em resumo: quando assisti a casa dos pequenos cubos pensei que está era uma metáfora muito bacana da psicanálise. Vamos erigindo cubos que vão deixando imersos nossas lembranças. E que a psicanálise nos ajuda a mergulhar pelas escotilhas para lembrar de quem somos para depois podermos celebrar todas as mortes que nos ajudaram a chegar exatamente aqui. Não saberemos a verdade última sobre nos mesmos, nunca saberemos (este é outro Enigma), mas nos tornamos mais investigativos, espero, eu, mais sábios, ao invés de mais científicos.

[1] Na mitologia grega antiga, Esfinge, é um monstro com rosto e busto de mulher, corpo leonino, asas e cauda de dragão, que propunha um enigma aos viajantes.
[2]ALVES, Rubem. O retorno e terno. 4ª ed. Campinas: Papirus, 1994. p.82-3
[3] Hedonismo é uma doutrina da Grécia antiga (Aristipo de Cirene e Epicuro) que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princípio e fim da vida moral. O hedonismo filosófico moderno procura fundamentar-se numa concepção mais ampla de prazer entendida como felicidade para o maior número de pessoas.
[4] ALVES. Ibid. p. 83
[5] LISPECTOR, Clarice. Correspondência Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 165
[6] FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte. Rio de Janeiro: Ediourto, 2004. p. 17

2 comentários:

  1. Laurinha, fiquei muito emocionado ao assistir o filme(voce deve saber o quanto rsr)e um dos aspectos que me chamaram a atenção foi que o ultimo cubo construido era praticamente do mesmo tamanho daquele que ele construiu ao começar sua vida a dois. ainda não me dei conta do seu significado, por enquanto fico com o sentimento. bjs. amo vc.

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  2. Lau. amei o texto... suas palavras estão aqui martelando em minha mente... ainda não vi o filme, mas assim que eu consegui assistir vamos conversar sobre... bjo Parabéns!

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